Biografias não autorizadas X Direito à privacidade

Autor: João Taboada   •   06/02/2014

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Com um pouco de atraso eu escrevo este artigo. Já há algum tempo a gente tem presenciado uma discussão acalorada entre autores de biografias, a opinião popular e os alvos destes autores que se tornaram meio algozes nesta história: as pessoas públicas. Estas, questionam o direito de outras pessoas abordarem sobre suas vidas, e aqueles, os biógrafos, justificam sua autoridade para exercer seu trabalho baseados na chamada "Liberdade de expressão" que nada mais é do que um direito adquirido e formalizado através da lei e dos princípios constitucionais.

Segundo nossa última Constituição, a de 1988, sobre liberdade de expressão diz:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
V - o pluralismo político
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e a propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença
Art. 220º A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Apesar de formalizada pela Constituição e/ou pelo Código Penal, não é difícil de se compreender que qualquer linha de pensamento que venha a se tornar regra de comportamento social é idealizada e avalizada por seres humanos, e, como tal, é passível de falhas. Tanto é verdade que, mesmo não sendo profissional do assunto, uma pessoa que assista televisão, leia jornal ou tenha estudado para concursos públicos, já viu leis e regras surgirem, serem reformuladas ou, simplesmente, deixarem de existir por motivos quaisquer. Não se constituem, portanto, verdade absoluta. Leis sobre o mesmo assunto variam, inclusive, de país para país. Mas, apesar de serem passíveis de falhas, nossa Lei e nossa Constituição são o que temos para nos guiar no que diz respeito à justiça e à correição de nossas ações.

A liberdade de expressão, que deixou de existir na época do Governo de Getúlio Vargas (Ditadura Militar), é um recurso essencial para que a informação seja propagada e permita o crescimento social através da democratização do conhecimento. Isso é inegável. Do outro lado da questão, porém, ficam os direitos individuais, também garantidos pela Constituição, que, apesar de estabelecer os dois direitos, não define uma relação de hierarquia entre eles, ou seja, nenhum é colocado como mais importante que o outro. Sendo assim, se não existe hierarquia, quem define importância desses direitos é a opinião de cada um movida por determinados interesses, seja, eles legítimos ou não.

A questão sobre as biografias não autorizadas tomou corpo a partir da união de alguns artistas de música popular no Brasil (Associação Procure Saber), criada para justamente "barrar" as biografias não autorizadas sobre eles, supostamente, em defesa de seu direito à privacidade. Em contrapartida, o termo "Liberdade de expressão" tem sido usado então, de maneira exaustiva, para justificar o direito à existência dessas biografias. Do grego "bios" = vida e "graphein" = descrever ou escrever. Segundo a etimologia, biografia é, portanto, algo como a descrição da vida de alguém baseada em dados de sua vida pública e particular, ou, em outras palavras, sua vida em toda sua plenitude.

Falando de um segmento específico, a classe artística, entendemos que a exposição pública é parte importante de seu trabalho. Isso acontece com atores e músicos, basicamente. Mas, o que é tornado público é a imagem do artista enquanto profissional, não sua imagem pessoal, portanto, o artista, apesar de ser uma pessoa pública continua tendo sua vida particular. Uma parte dos artistas no palco, inclusive, representa um determinado papel que, em tese, procura se adequar à concepção de seu trabalho. Assim aconteceu com muitos músicos/bandas nacionais e internacionais das décadas de 1970, 1980 e seguintes, como Kiss, Secos e Molhados, Kraftwerk, Alice Cooper, Sidney Magal, Ozzy Osbourne, Asdrúbal Trouxe o Trombone, Blitz, Waldick Soriano, David Bowie, e dezenas de outros que, de algum modo, representavam/representam um personagem em suas apresentações, mostrando que, no fundo, o artista se torna público pelo seu trabalho e não exatamente pelo que é como pessoa. Para uma biografia, porém, sua existência só se justifica na medida em que consegue conciliar fatos da vida pública com fatos da vida privada de alguém, seja este um político, um artista, um cientista, ou o que quer que seja, mas alguém de notório reconhecimento público.

Entendendo que as sociedades são feitas por pessoas - com suas características, qualidades e defeitos particulares - estas, enquanto seres conscientes de sua existência têm interesse por informação e tudo o que, aparentemente, possa contribuir para sua satisfação pessoal. A curiosidade por aspectos da vida particular das pessoas públicas é um destes interesses, que, em parte, é satisfeito graças à exposição voluntária e, às vezes exacerbada, de pessoas públicas e não públicas nas redes sociais e na mídia em geral. Os programas chamados Reality shows também servem muito bem para ilustrar este raciocínio. Nestes programas a vida e características particulares das pessoas são expostas a público com o consentimento dos participantes, que, em troca, concorrem a prêmios no decorrer e no final do programa, fazendo assim com que haja uma satisfação de ambos os lados. Diferente da questão das biografias, a exposição pública da vida pessoal nos Reality shows é a principal justificativa para a existência destes programas, onde o direito à privacidade é vendido em troca de determinados benefícios.

Na verdade, o direito à privacidade se tornou uma coisa confusa na medida em que a exposição da vida pessoal se transformou em algo banal e de difícil distinção sobre o que é ou não nosso direito no que diz respeito ao conhecimento sobre a vida de outrem. É como se tivéssemos o direito de informação sobre a vida privada de outras pessoas, independente de sua vontade. Os casos de exposição de fotos tiradas de celulares evidencia bem isto: além dos episódios de divulgação na internet de fotos de celulares roubados, recentemente, houve dois casos de suicídio de jovens por terem suas fotos íntimas divulgadas por seus parceiros. Nas ruas de algumas metrópoles como São Paulo, existem câmeras com a finalidade de detectar crimes e identificar seus autores. Nas empresas particulares o controle sobre as ações dos funcionários se tornou comum graças ao uso de câmeras e do monitoramento dos computadores no trabalho. Através dos computadores particulares, aliás, as empresas conseguem coletar dados pessoais (que integram o chamado Big Data) e transformá-los em instrumento comercial. O Brasil, inclusive, foi vítima recente de espionagem pelos Estados Unidos, que, já bisbilhotou também diversos outros países com a justificativa de tentar coibir o terrorismo.

Dentro deste campo de visão não é difícil perceber que se não houver um certo "controle", simplesmente ficaremos desprotegidos no que diz respeito a um dos nossos maiores bens. A proteção da privacidade, porém, quando contraposta à questão da liberdade de expressão dá a entender por quem a defende, uma postura autoritária, reacionária e mesquinha, como se nós não pudéssemos ter nenhum tipo de controle sobre a exposição de nossas vidas, e como se a negação dessa exposição de informações pessoais fosse, de alguma forma, barrar o desenvolvimento social. A argumentação dos biógrafos – que colocam como desnecessária a autorização prévia de biografias - se baseia também nesta ideia de que a revelação de informações sobre pessoas públicas faz parte do enriquecimento do conhecimento de uma sociedade. Isto, de certa forma, é verdade, mas o difícil é precisar o grau de importância deste conhecimento. É como se, o simples fato de existirmos, já determinasse para as pessoas o direito de saber sobre nossas vidas e de poder expor sobre elas, culminando assim, num acesso maior ao conhecimento e, em consequência, numa existência social mais completa.

Apesar deste raciocínio, não dá pra concordar que nossa vida deva ser, literalmente, um livro aberto. Nossa curiosidade não pode ser um passaporte para que penetremos na privacidade das pessoas, pelo menos, enquanto estão vivas, fazendo dela um direito nosso. A despeito das pessoas que fazem questão de se expor para conseguir benefícios através disto, toda a população têm direito ao resguardo sobre a exposição de suas ações, desde quando estas não sejam públicas. No caso de funcionários públicos, ao contrário, é importante sim que saibamos alguns detalhes sobre suas vidas pelo fato de que são sustentados com o dinheiro público, e, portanto, em parte, devem satisfação à sociedade. Mas este é um caso específico que não corresponde à maioria.

Qualquer pessoa - inclusive biógrafos - também teria a curiosidade de saber o que estão escrevendo sobre si em qualquer lugar do planeta, sendo injusta, assim, a "perseguição" feita àqueles que são a favor da autorização prévia de biografias, supostamente, por se colocarem contra a liberdade de expressão. Uma biografia é um veículo que passa credibilidade - ao contrário das revistas de fofoca e mídias sensacionalistas - atestando como verdade tudo o que está escrito nela sobre alguém, além de ter uma existência de caráter mais atemporal. É de se supor, assim, que, se uma biografia tem realmente sua importância social, seria correto que fosse distribuída gratuitamente, desta maneira, toda a sociedade poderia usufruir dela sem restrições e a qualquer tempo. Seria prudente, portanto, que os biógrafos se dignassem ao trabalho de gastar anos de pesquisa para distribuir todo este conhecimento sem ganhar um centavo. Seria mais honesto se feito desta forma, caso contrário, a liberdade de expressão soaria apenas como um argumento oportunista para facilitar a liberação e a vendagem deste trabalho, que de fato tem sua carga de importância, mas que, aparentemente, traz embutido um interesse comercial que justifica sua existência para quem o produz.

Resta saber afinal se, além da liberdade de expressão, o direito à privacidade também tem importância social, visto que diz respeito a cada indivíduo que compõe nossa sociedade, numa época em que tanto se fala em direitos humanos. A impressão que fica é que, com os rumos que a humanidade vai tomando, o direito à privacidade vai sendo colocado cada vez mais como artigo de manipulação, transformando a vida particular das pessoas em um produto de acesso compartilhado, de pouco valor intrínseco e de grande valor comercial.

 

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